domingo, 5 de outubro de 2014

a defesa é o melhor ataque (cultural)

Demorou mais de um mês para que tivesse o meu primeiro choque real, 220V, de cultura. A língua holandesa, por mais cuspida e escarrada que soe, não me assustou. O fato de só comerem sanduíches no almoço e o usarem o período pra todo tipo de reunião eu consegui contornar. De trabalharem tão pouco também (9 às 5, podendo ser menos que isso). Até uma outra coisa que vou contar (um dia) na segunda parte do "como ser estúpido" estou tentando ver por um prisma positivo. Mas sempre tem um mas que pesa. Que incomoda. E esse foi assistir a uma defesa de doutorado.

A princípio achei superbacana que tivessem um prédio próprio e lindo pras defesas, com um auditório impecável que lembrava o interior de uma igreja antiga. Considero bem pouco lisonjeiro defender o seu trabalho de 4 anos em uma salinha escondida da universidade com projetor capenga, barulho de obra e reboco descascando (quando há), portanto achei essa parte fantástica. Tinha uma sensação de bom agouro. Ainda mais porque logo na entrada já recebíamos uma cópia do livro/tese, olha que legal!

Estava lá bem de boa conversando com o meu colega de escritório ganês em um dos primeiros bancos quando ouvi um estrondo vindo da parte de trás. Antes que pudesse me virar todos se levantaram, então demorei alguns segundos até vê-la. Ela, a Senhora do Tribunal da Inquisição (STI). Uma mulher vestida com uma toga preta e uma espécie de cetro (a fonte do estrondo por ter sido batido no chão à sua entrada) atravessou o salão com a melhor poker face da morte que poderia fazer. Devo ter sentido um calafrio nesse momento, e nem o fato de ela ter autorizado que sentássemos fazia com que me livrasse do desconforto.

Seguindo STI estavam a pobre doutoranda, muito bonita e bem arrumada, e mais duas pessoas vestidas de preto, que depois descobri serem as suas paraninfas (mas gente?). Em seguida entraram os orientadores e a banca, todos de toga e chapeuzinhos de badulaques balançantes. Pare por um segundo e tente imaginar a cena na sua cabeça. Ou se não quiser ter o trabalho, veja algumas fotos. Não parece uma espécie de preliminares de tortura medieval? Mas que diabos? Àquela altura já sentia que uma pintura descascando cairia bem.

A apresentação começou pontualmente no horário marcado e a menina estava bastante nervosa, trocando as palavras e tudo mais (felizmente era londrina, portanto não teria problemas com a língua em si). Falou o que precisava a respeito dos seus artigos em menos tempo do que tinha direito e então se prosseguiu com as perguntas da banca. E eram só perguntas mesmo. Nada de "nossa, que trabalho mimoso" ou "veja, o seu trabalho ficou ó: uma bela bosta"; nada de 3 horas discursando sobre coisas completamente não-relacionadas com o trabalho da pessoa. Era uma metralhadora mesmo, com perguntas no nível "por que você não usou o fator X como categoria no seu trabalho?". Uma atrás da outra, tantas quantas o tempo estipulado por pessoa permitisse. E eram quatro na banca.

Além da tese, nos entregaram um papel avulso com proposições da doutoranda. Consistiam em 6 frases curtas para discussão caso alguém da banca assim o quisesse; as três primeiras diretamente relacionadas ao trabalho e as outras três sobre qualquer outra coisa que pudesse envolver o trabalho (o tema era governança da pesca do atum e a menina fez uma proposição citando Nemo e Flipper. Aplaudi mentalmente mesmo estranhando a piada num ambiente tão formal quanto aquele). Diga-se que essa era a única função das paraninfas: ler alguma das frases a pedido de alguém. De resto, poderiam ser mais um dos vasos de flores.

A certa altura a menina se sentiu tão pressionada que teve um branco total de alguns segundos. Porém, não deixou a peteca cair e se saiu muito bem, fez piadas e tudo mais. Então o tempo destinado à defesa acabou (em torno de uma hora) e todos se retiraram do palco. Obviamente precedidos por STI e sua já tradicional cajadada no chão.

Mas que diabos.

No intervalo me explicaram que a defesa é mais teatrinho que qualquer outra coisa. Pra poder defender a pessoa já tem que estar aprovada, e só acontece de não ganhar o título se ficar evidente que não sabe responder às metralhadas da banca. Os orientadores recebem as observações sobre o trabalho por escrito, antes da defesa, e fica a critério deles se vão repassar tudo ao orientando. Isso tudo fica ainda mais sem sentido se você considerar que aqui adotam a nova prática de teses que na verdade são vários artigos costurados por uma introdução e conclusão comuns, os quais foram submetidos a revistas e muitas vezes já foram publicados. A pergunta que fica é: então é pra quê? Se sois tão pra frentex, pra quê, Holanda? Além de serem liberais também rola uma afinidade por BDSM de que eu desconheço? Chegava a ser desconcertBAM! 
STI estava de volta na presidência da procissão.

A segunda parte era bem mais relaxada e até bonitinha. Foi concedido o título de doutora, o qual foi assinado pela menina na hora, enrolado e colocado em uma lata vermelha. Fotos fotos fotos, discursinho dos orientadores, aquele tipo de coisa. Logo depois ofereceram almoço (que não comi) e à noite ainda teve jantar em um café que queria visitar há uns dias, o que foi bacana. Ainda mais porque foi de graça e estava divertido.

A propósito: foi a segunda ocasião em que houve um acontecimento importante no meu grupo e que fizeram letras em cima da melodia de Glória, Glória, Aleluia, com o chefe e um professor de lá tocando os instrumentos. Fica a questão em aberto pra saber se é algo nacional ou só uma graça dos bonitinhos da política ambiental.

Seja o que for, não me admira.

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