domingo, 5 de outubro de 2014

a defesa é o melhor ataque (cultural)

Demorou mais de um mês para que tivesse o meu primeiro choque real, 220V, de cultura. A língua holandesa, por mais cuspida e escarrada que soe, não me assustou. O fato de só comerem sanduíches no almoço e o usarem o período pra todo tipo de reunião eu consegui contornar. De trabalharem tão pouco também (9 às 5, podendo ser menos que isso). Até uma outra coisa que vou contar (um dia) na segunda parte do "como ser estúpido" estou tentando ver por um prisma positivo. Mas sempre tem um mas que pesa. Que incomoda. E esse foi assistir a uma defesa de doutorado.

A princípio achei superbacana que tivessem um prédio próprio e lindo pras defesas, com um auditório impecável que lembrava o interior de uma igreja antiga. Considero bem pouco lisonjeiro defender o seu trabalho de 4 anos em uma salinha escondida da universidade com projetor capenga, barulho de obra e reboco descascando (quando há), portanto achei essa parte fantástica. Tinha uma sensação de bom agouro. Ainda mais porque logo na entrada já recebíamos uma cópia do livro/tese, olha que legal!

Estava lá bem de boa conversando com o meu colega de escritório ganês em um dos primeiros bancos quando ouvi um estrondo vindo da parte de trás. Antes que pudesse me virar todos se levantaram, então demorei alguns segundos até vê-la. Ela, a Senhora do Tribunal da Inquisição (STI). Uma mulher vestida com uma toga preta e uma espécie de cetro (a fonte do estrondo por ter sido batido no chão à sua entrada) atravessou o salão com a melhor poker face da morte que poderia fazer. Devo ter sentido um calafrio nesse momento, e nem o fato de ela ter autorizado que sentássemos fazia com que me livrasse do desconforto.

Seguindo STI estavam a pobre doutoranda, muito bonita e bem arrumada, e mais duas pessoas vestidas de preto, que depois descobri serem as suas paraninfas (mas gente?). Em seguida entraram os orientadores e a banca, todos de toga e chapeuzinhos de badulaques balançantes. Pare por um segundo e tente imaginar a cena na sua cabeça. Ou se não quiser ter o trabalho, veja algumas fotos. Não parece uma espécie de preliminares de tortura medieval? Mas que diabos? Àquela altura já sentia que uma pintura descascando cairia bem.

A apresentação começou pontualmente no horário marcado e a menina estava bastante nervosa, trocando as palavras e tudo mais (felizmente era londrina, portanto não teria problemas com a língua em si). Falou o que precisava a respeito dos seus artigos em menos tempo do que tinha direito e então se prosseguiu com as perguntas da banca. E eram só perguntas mesmo. Nada de "nossa, que trabalho mimoso" ou "veja, o seu trabalho ficou ó: uma bela bosta"; nada de 3 horas discursando sobre coisas completamente não-relacionadas com o trabalho da pessoa. Era uma metralhadora mesmo, com perguntas no nível "por que você não usou o fator X como categoria no seu trabalho?". Uma atrás da outra, tantas quantas o tempo estipulado por pessoa permitisse. E eram quatro na banca.

Além da tese, nos entregaram um papel avulso com proposições da doutoranda. Consistiam em 6 frases curtas para discussão caso alguém da banca assim o quisesse; as três primeiras diretamente relacionadas ao trabalho e as outras três sobre qualquer outra coisa que pudesse envolver o trabalho (o tema era governança da pesca do atum e a menina fez uma proposição citando Nemo e Flipper. Aplaudi mentalmente mesmo estranhando a piada num ambiente tão formal quanto aquele). Diga-se que essa era a única função das paraninfas: ler alguma das frases a pedido de alguém. De resto, poderiam ser mais um dos vasos de flores.

A certa altura a menina se sentiu tão pressionada que teve um branco total de alguns segundos. Porém, não deixou a peteca cair e se saiu muito bem, fez piadas e tudo mais. Então o tempo destinado à defesa acabou (em torno de uma hora) e todos se retiraram do palco. Obviamente precedidos por STI e sua já tradicional cajadada no chão.

Mas que diabos.

No intervalo me explicaram que a defesa é mais teatrinho que qualquer outra coisa. Pra poder defender a pessoa já tem que estar aprovada, e só acontece de não ganhar o título se ficar evidente que não sabe responder às metralhadas da banca. Os orientadores recebem as observações sobre o trabalho por escrito, antes da defesa, e fica a critério deles se vão repassar tudo ao orientando. Isso tudo fica ainda mais sem sentido se você considerar que aqui adotam a nova prática de teses que na verdade são vários artigos costurados por uma introdução e conclusão comuns, os quais foram submetidos a revistas e muitas vezes já foram publicados. A pergunta que fica é: então é pra quê? Se sois tão pra frentex, pra quê, Holanda? Além de serem liberais também rola uma afinidade por BDSM de que eu desconheço? Chegava a ser desconcertBAM! 
STI estava de volta na presidência da procissão.

A segunda parte era bem mais relaxada e até bonitinha. Foi concedido o título de doutora, o qual foi assinado pela menina na hora, enrolado e colocado em uma lata vermelha. Fotos fotos fotos, discursinho dos orientadores, aquele tipo de coisa. Logo depois ofereceram almoço (que não comi) e à noite ainda teve jantar em um café que queria visitar há uns dias, o que foi bacana. Ainda mais porque foi de graça e estava divertido.

A propósito: foi a segunda ocasião em que houve um acontecimento importante no meu grupo e que fizeram letras em cima da melodia de Glória, Glória, Aleluia, com o chefe e um professor de lá tocando os instrumentos. Fica a questão em aberto pra saber se é algo nacional ou só uma graça dos bonitinhos da política ambiental.

Seja o que for, não me admira.

domingo, 14 de setembro de 2014

como ser estúpido: tulipolândia edition (parte 1)

Existem várias experiências inevitáveis quando a gente se muda para um país totalmente desconhecido. Novos lugares, pessoas, ares, comidas, culturas e vivências fazem parte do pacote e são a parte mais bonita e colorida que se pode ter. São a parte que todo mundo quer. Porém, nem tudo são unicórnios saltitando por campos de tulipas. Há outro fator inescapável nessa dinâmica: bancar o idiota. Então se por algum acaso sua estadia na Holanda estiver muito perfeita e você quiser dar uma incrementada com desespero e desolamento, aqui vai um guia com sugestões de como se sentir estúpido, em maior ou menor grau, em 12 passos simples*.


1) Pegue o trem sem saber bem como funciona o sistema:
Antes de sair do Brasil, uma funcionária da universidade daqui gentilmente me mandou este educativo vídeo de como chegar com tranquilidade ao meu destino. Tava no papo: chega no aeroporto, compra o cartão na maquininha, dá check-in no trem e bora.

Rá.

Depois de rodar um pouco pra achar as máquinas no aeroporto, a primeira em que fui não vendia o cartão. A segunda pedia que eu inserisse meu cartão de débito e eu tive que chegar a pedir ajuda pra entender como enfiava o bendito na fenda (quem não sabe enfiar um cartão em uma máquina automática? Euzinha). E não adiantou nada, porque não aceitava meu cartão de débito. A terceira não aceitava meu cartão de débito. A quarta não aceitava meu cartão de débito. Nenhuma sacrossanta máquina aceitava meu cartão de débito e se fosse pra pagar em dinheiro, só aceitavam moedas. Não tinha moeda alguma. Então fui até o guichê pra comprar meu Ov-chipkaart. E ufa, comprei. Mas... cadê a estação? No subterrâneo, logo vi. Também vi as escadas que davam acesso à estação. Finalmente, os elevadores. E desci confiante.

E logo de cara em uma plataforma (por obra divina, a certa). Não vi lugar nenhum pra dar check-in no trem e fui perguntar, afinal me parece correto pagar pelo que se usa. O funcionário da estação disse que no andar de cima. Eu achei que ele se referia à compra do cartão e perguntei de novo, dizendo que já o tinha feito. "No andar de cima", respondeu sem olhar na minha cara, mas com a expressão de quem fala com deficientes mentais. Então tá.

Subi com as três malas, achei o totem pra dar check-in e aí você já sabe o resto: entrei no maldito vagão errado e chorei feito uma bezerra.


2) Cumprimente pessoas:
No meu segundo dia aqui fui a um jantar na casa do Thiago e da Andrielli, brasileiros que estavam recebendo uma italiana que prometia ensinar a fazer macarrão. Macarronada, a bem da verdade, porque o macarrão já estava pronto (Rafael frustrado que o diga).

Cheguei e foi automático cumprimentar com um beijo no rosto. A italiana me olhou com desconfiança e a mão semi-estendida, mas deu o rosto. Eu dei um beijo e ela virou pra dar mais outro. Eu não. Toda uma névoa de constrangimento invadiu o recinto. Quis ir para o cantinho da reflexão mesmo sem saber bem o que tinha feito de errado.

E então soube: se você acaba de conhecer alguém aqui, só se dá a mão. Rosto e demais partes da sua anatomia, só depois de alguma intimidade. E se for pra dar beijo, são logo três (só não sei se é pra casar).


3) Vá ao mercado: 
A Cynara já havia me alertado que uma das experiências mais desesperadoras para recém-chegados seria ir ao mercado. Acreditei, é claro, mas ao chegar não achei tão horripilante assim ver um rótulo destes



Quero dizer, definitivamente não é animador entender duas de 94562489 palavras, mas já era algo esperado. Se não consigo deduzir o que uma coisa é, parto pra próxima ou procuro no dicionário se a curiosidade não me permite seguir adiante. O que me pegou mesmo estava na seção de frutas e legumes (sempre muito capciosa) e no caixa.

Queria limões. Limões são legais. Gosto deles. Resolvi trazer 5 pra casa e precisava pesá-los, porém não havia ninguém operando a balança. Supus que você mesmo precisava fazê-lo e lá fui eu operar a máquina perigosa.

Holandeses são tão fofos que colocam o nome e a foto dos itens à venda, portanto qualquer estúpido poderia selecionar a opção correta. Selecionei os citroenen e já comemorava internamente quando apareceu uma mensagem na balança, algo como "eohr ouherhsao ishdjidjslik utewhep nobidbsfoq ndosb ei". Hum... doesn't ring a bell.

Pedi para o Moço Funcionário me ajudar com aquele grande mistério e ele disse que só precisava pesar se você usasse o caixa de self checkout, mas me guiou mesmo assim, escorrendo paciência. O que aquela bela mensagem queria dizer é que eles vendiam os limões por unidade. Era só saber contar e ter apertado o número 5. Tinha faltado apenas a última parte, até onde me consta.

Como um dos meus principais passeios tem sido ir a mercados, em outra oportunidade não tive que pesar nada, mas ainda assim precisava pagar. Depois de ter colocado toda a minha compra na esteira (holandeses são muito estritos com os cavaletezinhos para separar as suas compras das dos outros na esteira; se você não puser, alguém vai por pra você com ar irritado), vi um sinal de que não aceitavam dinheiro. Como os de trânsito, círculo vermelho com uma faixa no meio. Proibidíssimo. Confirmei com o atendente e não recebiam mesmo, que guria tonta.

Então alguns dias depois fui a outro estabelecimento numa fila em que havia o mesmo símbolo (no qual só fui reparar quando já estava na minha vez). Resmunguei para a moça que não aceitavam dinheiro ali, né? E aceitavam. Que guria tonta.

Ou seja: nunca se sabe. Talvez dê pra fazer uma roleta russa alternativa, uma holandesa, quando se trata de caixas. Livin' la vida loca, babe.


4) Arrisque algo em holandês:
Pra mim parece mancada não aprender a língua do lugar em que você vive, portanto saí determinada a aprender pelo menos um pouquinho de holandês. Isto é, quando eu achava que não seria difícil aprender um pouquinho de holandês. Êta língua de pronúncia trava-língua e sem cognatas com nenhuma outra que conheça.

Em todas as vezes que pedi algo (pretensamente) em holandês, foi automático que todos me respondessem em inglês. Tão frustrante, tão óbvio que sou gringa. Só foge da minha compreensão se fazem isso por cortesia e para que você não sofra muito ou se dizem entre os dentes "pare de estuprar minha língua materna, sua vadia" enquanto respondem no seu inglês polido. Não sei. Só sei que virou questão de honra que chegue o dia em que diga qualquer coisa em holandês e me respondam em holandês. Só pra daí eu poder dizer, com um sorriso contido, "sorry, I don't speak dutch".

Mas tá, cadê o se sentir idiota aí? Não tem. Entretanto, já ouvi N histórias de gente que falou qualquer coisa em holandês, um nome que fosse, e de repente se viu dentro de um sketch do Monty Python.

- Sabe ihjskjl?
- Quê?
- Ihjskjl.
- Oi?
- Ihjskjl!
- Desculpa, não entendi.
- Ihjskjl!!!!!
- Nope, nada.
- I-hjs-kj-l.
- ... Coca-cola?
Você escreve a palavra.
- Ah, ihjskjl! - na mesma pronúncia que você. "Mas não sei não".

Desconheço se é falta de um Sonic 2000 ou só um pouco de má vontade, mas de toda forma deve ser uma das sensações mais frustrantes do mundo.


5) Não arrisque algo em holandês:
Justamente por essas histórias que acabei de reproduzir, o dia em que precisei pedir um táxi foi um curto pesadelo. Veja bem, eu estava na rua Commandeursweg e precisava ir à Wim Sonneveldstraat (sugiro que você ouça as pronúncias de ambas jogando no Google Translator). Se foi difícil dizer yoghurt para o sorveteiro uns dias antes, imagina isso. Ninguém ia entender nada e eu não estava afim de Monty Python naquele dia.

Então procurei sem muita esperança algo online. Obviamente não havia. Mandei email para uma empresa que fazia propaganda no Facebook e não me respondiam. Nada. Então me enfezei e resolvi ligar e tentar a sorte, nem que tivesse que soletrar. Não existem táxis sexta-feira à noite em Wageningen.

No final das contas não consegui táxi algum e não me mudei na data estipulada (o táxi era pra isso). Só tive coragem de comunicar à dona da casa que tive um imprevisto... o que não deixa de ser verdade.


6) Tome banho:
Eu amo banheiras, ainda que tenha convivido pouquíssimo com elas. Nossos encontros foram muito fortuitos - porém intensos - pela vida. Entretanto, amo tanto que tenho certeza de que não vou ficar solteira até morrer por sentir no meu âmago que vou me casar com uma banheira algum dia. Qualquer uma. Amo todas. Quem sabe me case com mais de uma até.

Sendo assim, foi uma grande alegria abrir a porta do banheiro da casa nova e ver uma linda banheira branca, bem do meu número. Grande o suficiente pra poder deixar a maior parte do meu corpo submersa e pequena o suficiente pra não desperdiçar muita água. Bonita e sensual. Tava louca pra esticar meu corpo nu nela todinha.

Então chegou o grande momento. Levei todos meus produtos de higiene, abri a torneira e aí... a água saiu pelo chuveiro. Chuveiro esse que estava enrolado num canto, quase um chuveirinho. Estava tão ansiosa por um banho que ele aconteceu assim mesmo, eu segurando o chuveiro com uma mão e me ensaboando com outra, tudo do mais desengonçado possível. Mas eu iria voltar, ah se iria.

A ideia era planejar todo um dia de modo a ter tempo pra me tornar uma uva passa dentro daquela belezinha, mas naquele momento tinha pressa pra sair e precisava mesmo era de uma chuveirada. Entrei no banheiro, vi o chuveiro pendurado no suporte e... EI! Porra, tinha suporte pra pendurar! Pqp. Tudo bem, retoma. Vamos tomar uma chuveirada, agora com as duas mãos livres. Abri a torneira e aí... a água saiu pela banheira.

Mexi em tudo o que consegui imaginar que pudesse mudar direcionamentos aquosos, mas a água continuou saindo pela banheira. Apertei, puxei, joguei pra um lado, pro outro, procurei passagens secretas, gritei palavras mágicas. Nada. O negócio era encher a banheira e tomar um banho rápido.

Acontece que eu precisava lavar o cabelo também. E pra molhá-lo era aceitável usar aquele caldo de mim mesma que ficou na banheira, mas pra enxaguar já era porquice. Então, a cada vez que precisava fazer isso, me dobrava em 37 pra caber debaixo da torneira banheirística, enquanto sentia pontadas nas costas e no meu ego.

9 da manhã e já derrotada pela vida. Eventualmente descobri que era apenas uma questão de puxar a mangueira, mas a essa altura meu orgulho tinha ido passar uma temporada em um rehab.

(continua)

* favor não levar a sério, embora tudo isso tenha acontecido. A intenção aqui é encontrar o humor dessas situações. E só.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

não vou de táxi

Ainda no Brasil comprei uma bicicleta de uma menina que estava deixando Wageningen. Estava bastante ansiosa para estreá-la. Para conhecer a cidade, sim, mas muito mais porque fazia 15 anos que não andava em qualquer aparato de duas rodas. Será que a sabedoria popular era sábia mesmo? E se eu viesse ao país das bicicletas e não conseguisse domar uma, seria expulsa? Um pária? Alien ao cubo?

Bom, sim, mas bastaram duas pedaladas pra que pudesse suspirar aliviada e ter a certeza de que o vexame não seria muito. A Corguinha (minha bicicleta, batizada com o sobrenome da menina que a vendeu [favor não contar]) estava sem um freio, com a pintura descascada em alguns lugares e toda desengonçada, mas estávamos nos entendendo. Menos com o guidão, que possivelmente foi projetado pelo capiroto em pessoa. Me levou alguns dias até me acostumar bem com ele e não parecer ligeiramente bêbada na condução.

Creio que existem mais regras de etiqueta em relação às bicicletas que socialmente por aqui. São vários os macetes. Você precisa sinalizar para virar, aprender a usar os semáforos para ciclistas, de que lado das vias ficar, onde pode e não pode transitar, quando e como usar a buzina, as luzes obrigatórias, a trava da bicicleta, chaves, onde estacionar. Ainda assim, é tudo muito tranquilo de entender e lidar e me tornei dessas pessoas que não cogitam ir a pé à padaria. Agora é só montada na Corguinha.

Logo no primeiro dia não-motorizado zanzamos por metade de Wageningen, por umas 3 horas. Percebam quanta Holanda em apenas uma foto:


O campus da Wageningen UR é impactante, sequer parece uma universidade. Os prédios são modernos, tanto na arquitetura quanto na tecnologia que existe neles, tudo muito espaçoso e bonito. Todos os edifícios foram batizados com nomes, os quais têm seus letreiros iluminados à noite (ainda preciso voltar lá com uma câmera decente pra tirar algumas fotos disso). Aliás, tudo aqui fica bem iluminado e tranquilo, a bem da verdade.

A cidade a princípio me deu uma sensação estranha. É tão inha. Bonitinha, arrumadinha, floridinha, organizadinha, limpinha, fofinha, calminha, exibidinha... Cortinas são item raro nas enormes janelas: as pessoas gostam de mostrar o que há dentro de suas casas. Aliás, descobri depois, me parece que a transparência é uma das grandes características holandesas. Ninguém esconde o que pensa ou o que é. E, apesar de chocante e frequentemente desconcertante, essa é uma característica que me agrada demais. Imagina só que incrível poder ser o que você é (e não ter que ir para o inferno por causa disso)?

Além dos grandes jardins e janelas nuas, existe um apreço especial pela luz indireta. Uma casa holandesa comum conta em média com 5 luminárias por metro cúbico, e também podemos adicionar um vasinho de plantas a esse espaço (fica o mistério de saber a metragem que sobra para se viver nos recintos). Dificilmente se vê cercas entre as casas, e quando existem normalmente são arbustos demarcando o território. As casas não diferem muito entre si e me pergunto se é um acordo espiritual ou se realmente existem regras para essa espécie de uniformização. Holandeses manipularam geneticamente as cenouras para que fossem alaranjadas, afinal. De toda forma, amo as portas e janelas coloridas. Quero algumas dessas pra chamar de minhas.

Ainda que Wageningen pareça um grande cenário dos Teletubbies, com patinhos soltos e tudo, a tranquilidade que existe nela é inspirante. Quando vi os lagos cheios de algas, as árvores frondosas, os rios e demais paisagens de aula de pintura, só consegui imaginar que foi isso a que o Hermann Hesse se referia em seus livros. Ele era alemão e falava da Alemanha, claro, mas ela está aqui do ladinho e julgo que não seja tão diferente. Essa era a paisagem que imaginava lá por 2004, enfim, quando devorava os seus livros durante os intervalos da faculdade. E pode parecer bobagem pra você, mas ter tudo isso diante de mim isso teve um peso significativo. Me trouxe uma sensação de conforto, de familiaridade.

"E aí, já está apaixonada pela Holanda?". Até ter ido a Utrecht, alguns dias depois, confesso que não estava. Completamente ambientada e à vontade, sim, mas não amando. Utrecht me fez sorrir à toa. Mas essa parte fica pra depois.


domingo, 7 de setembro de 2014

para se chegar ao novo velho mundo

Assim que entrasse no avião e encontrasse meu assento, choraria tudo o que não havia chorado. Ou choraria nas despedidas. No aeroporto, talvez. Ao dizer tchau pra minha gata. Fazendo as malas?

Hum.

Não chorei. Na verdade fiquei feliz com as despedidas no aeroporto, porque julgava que ninguém iria dar tchauzinhos numa segunda-feira pela manhã em São José dos Pinhais. E foram quatro pessoas, veja só, das mais queridas na minha vida. Entrei tranquila na sala de embarque e assim permaneci. Tudo muito natural. Passos firmes e suados pelo excesso de roupa.

Eu quase chorei mesmo quando me dei conta de que estava sentada em uma caixa de metal, a mais de 10 quilômetros de altura e 850/h de velocidade, atravessando todo um oceano. Não consegui dormir. A cada vez que começava a cochilar, acordava assustada achando que o avião estava caindo. Todos os pensamentos e respirações em que pude pensar pra me relaxar (incluindo o de que uma hora todos vamos morrer de qualquer jeito, de que adianta me incomodar?) falharam. Bebi champanhe, comi pesto, gritei que era rica: nada. Até o Dramin falhou. E sono não era exatamente o que o comissário de bordo mais bonito do mundo me dava.

Ao anunciarem a descida a Paris confesso que meu coração-clichê ficou mexido. Vi a torre Eiffel ao fundo e surgiu um "estou aqui... caralho, eu realmente estou aqui" em loop mental. Sorria e ouvia. Mostrei a torre para a moça que viajou ao meu lado e que pediu que eu andasse um pouco porque era perigoso passar tanto tempo sentada (heh, não me diga. Por causa de trombose?). Achei o dia nublado mais bonito dos últimos tempos.

O Charles de Gaulle é monstruoso e demoramos uma meia hora pra chegarmos até a área de desembarque, ziguezagueando por aviões e depósitos. Ao final do trajeto nos deparamos com um lance de escadas e ouvi "depois o Brasil que é atrasado" atrás de mim. Concordei. Escadas não são a escada para o sucesso. Ter um aeroporto faraônico para receber os seus milhões de turistas é aviltante. Você deveria se envergonhar, França.

Passei pela imigração, me fizeram tirar as botas e tudo o que tinha na minha malinha, me encantei com o banheiro e pensei que poderia morar ali (espaço de sobra e privada já tinha). Arrisquei um bonjour bem baixinho pra não passar vergonha. Tentei tirar fotos, mas a bateria do celular já dava seus últimos suspiros. As tomadas francesas não foram amigáveis e me obrigaram a ficar numa posição Cirque du Soleil (eu sei que é canadense, respira) para conseguir 5% a mais de vida. Desisti e desliguei. Pesquei. O voo para Amsterdam não demoraria muito.

Não me lembro muito do voo porque meu cérebro desistiu de funcionar. Várias pessoas falaram comigo em francês, eu fazia cara de bolinho encabulado. E então voltei à terra firme.

-

O cansaço era tanto que precisei de uns 25 minutos pra achar a esteira certa e pegar minhas malas. Tanto, que nem consegui ficar muito incomodada quando vi que uma delas voltou aleijada. Tanto, que nem tive ânimo de procurar a loja certa pra comprar o chip do celular ou a de maquiagem em que precisava ir. Só liguei o automático e fui. Ou melhor, depois de lutar um tanto pra conseguir comprar o cartão do trem e de descobrir como pagá-lo e como a rispidez holandesa funciona, fui.

E eu fui no vagão errado. Entrei sem querer no da primeira classe, carregando 3 malas sozinha, e o trem partiu. Porra. Perguntei se havia como ir até o vagão certo por dentro e o Moço Solícito me disse que sim. Então percebi que as minhas malas pesadas não passavam entre os assentos. E o cansaço era tanto...

Suava, xingava baixinho. Depois de uma curta batalha desisti e me joguei numa poltrona; em um timing perfeito, o cobrador surgiu. Expliquei que entrei no vagão errado por engano, I don't even wanna be here!, Moço Solícito confirmou a história. E lágrimas obesas começaram a cair sem parar. I'm so sorry!, e água, I've been travelling for a whole day, I'm so tired!, água, água, água. O cobrador sequer ficou irritado comigo e tive a impressão de que Moço pagou a diferença da passagem. Mas eu não conseguia evitar o choro. Finalmente.

Demorei vários minutos até me recompor. Moço disse pra que dormisse, que ele me avisaria quando chegássemos na estação de Ede-Wageningen. Não dormi. Tentei tirar algumas fotos e não havia inspiração. Eu só queria... sei lá o que diabos eu queria.

Ao estarmos próximos à estação, moço levou minhas malas escadas acima. Ao chegarmos, tirou minhas malas rapidamente, mesmo sob meus protestos. Agradeci o máximo que pude e ainda assim acho que não foi o suficiente. Moço Solícito, apesar de eu achar que você fez piada de mim com a Moça Não Solícita que estava contigo, eu agradeço a sua gentileza do fundo do meu coração.

Ede me recebeu nublada e com garoa - até ali podia ser Curitiba -, Cynara me recebeu com um abraço brasileiro e uma primeira foto em terras holandesas. Então fomos para sua casa em Bennekom, outra mala se liquefez no caminho, conheci o Rafael, tomei banho, jantamos, pus o meu pijama novo e esqueci o mundo.

Erm, oi, Holanda...?

violentaram o glamour

O momento em que respirei fundo e deixei minhas mãos caírem nas coxas dizendo "então é isso, vou pra Holanda!" não aconteceu. Não posso dizer em que momento comecei os preparativos ou quando senti que realmente estava a ponto de ir embora. Muito menos quando cheguei. Tudo foi um movimento contínuo nos últimos meses, desde março pra ser exata, e só agora tenho sentido o peso de todo esse esforço.

Sim, esforço. Não tive espaço pra me sentir feliz, e percebo os olhares de reprovação quando o digo. Então aqui entra a primeira lição pra vocês que ainda não tentaram um doutorado sanduíche no exterior com financiamento federal: não existe glamour no processo. Pelo contrário. Em alguns casos, no meu em especial, você precisa comer a merda de muita gente, comer o seu próprio estômago, comer um mundo inteiro de tanta ansiedade, pra só então chegar onde queria. Em Wageningen, pra mim.

Mas eu não quero começar essa história numa nota sombria, só estou puta da cara porque acabei de perder uma cafeteira italiana de 10 euros no caminho de volta do mercado (pois é, isso também acontece aqui). Quero mesmo é começar na minha nota de sempre, a mais realista possível. Com alguns momentos Pollyanna e Grumpy Cat intercalados no meio disso tudo, porque é assim que as coisas me são.

Welkom.